Inteligência Política e Manutenção do Poder
em Nicolau
Maquiavel (anotações)
por Fábio Régio
Bento
O
Príncipe, escrito em 1513 e publicado em 1531, quatro anos depois da morte de
Nicolau Maquiavel (1469-1527), após mais de cinco séculos de sua redação
continua sendo reproposto permanentemente por meio de várias traduções, nem
sempre coerentes com o texto de 1513. De fato, como constatou Marques (2006,
p.41), o Maquiavel
de O Príncipe
ainda continua sendo
apresentado como “um professor do mal”. Ao contrário, porém,
do que afirma o senso comum, o secretário florentino não foi maquiavélico.
Neste artigo, por meio do estudo direto de O
Príncipe com o texto em italiano de
1513 (MACHIAVELLI, 1988), e com o auxílio da tradução de Maria Lucia
Cumo (MAQUIAVEL, 1996), analisaremos as conexões em O Príncipe entre
inteligência política e manutenção virtuosa do poder, sustentando que O
Príncipe não é um livro amoral, nem imoral, mas de moral política da manutenção
inteligente do poder segundo o que Maquiavel compreende por virtudes políticas.
Em
1513, quando Maquiavel escreveu O Príncipe, a Itália ainda não existia na forma
política como a conhecemos hoje. Havia um território denominado península
Itália e um idioma relativamente compartilhado, criado séculos antes por Dante
Alighieri. A unidade da Itália ainda era um sonho político, uma utopia,
entendida como projeto, meta a ser realizada. Na Europa, Portugal, Espanha,
França já haviam unificado suas monarquias,
mas na Itália ainda não havia unidade nacional. De fato, na época
de Maquiavel “a Itália estava dividida em cinco grandes Estados: 1) o
Reino de Nápoles, ao sul; 2) os Estados Pontifícios e 3) a República de
Florença, ao centro; 4) a República de Veneza e 5) o Ducado de Milão, ao norte”
(PIZZORNI, 1989, p.41). Nesse contexto de não-unidade nacional, de dominação
estrangeira, Maquiavel ambiciona a unidade política nacional da península
itálica sob a forma de uma monarquia nacional comandada por um príncipe novo,
sábio, prudente, corajoso que viria da casa dos Médicis. Como resumiu Mario
D’Addio (1995, p.298),
a
exortação dirigida a Lourenço de Médicis no capítulo final do Príncipe, para
que ele
assuma a iniciativa
de liberar a
Itália do estrangeiro,
mediante a constituição de um Estado forte italiano na
Itália centro-setentrional, demonstra que
a análise conduzida
no Príncipe se
traduz no final
em um específico programa de ação política.
Ora,
o sonho de Maquiavel, como sabemos, ocorrerá somente mais de três séculos depois,
no final de 1800, com a proclamação do Reino da Itália. Como explicar o sucesso
inoxidável de O
Príncipe, meio século
depois de sua
redação, dado que
nem mesmo realizou o objetivo
imediato ad hoc para o qual foi
escrito? Explica-se o sucesso científico e político de O Príncipe a partir da
compreensão da palavra “clássico”, que significa de valor permanente. Assim, o
que é que tem valor permanente em O Príncipe? Sua intenção era identificar o
perfil do príncipe ideal para a
construção de uma monarquia nacional que unificasse politicamente a península
itálica. Para isso, ele elaborou uma sua análise das relações políticas, com emprego
de um método original e com a elaboração
de conteúdos políticos também diferentes dos de seu tempo.
Tal
método e conteúdo de Maquiavel, em O Príncipe, tornaram-se de interesse geral,
permanente. O que ele escreveu ad hoc
para o príncipe que unificaria a Itália, conforme seu desejo político,
permaneceu como clássico da ciência e da política prática. Mas o que há de
original e permanente (clássico) em O Príncipe? Para o italiano Benedetto Croce
(1931, p.181), “contra os que concebiam o Estado como instituto moral e
religioso submisso às regras da piedade cristã, convinha gritar que
os Estados não
se governam com
os pais-nossos; e que exigem, em
vez, virtudes”.
As
virtudes políticas do príncipe ideal, segundo Maquiavel, são as necessárias à
realização de seu objetivo principal. Assim, para a unificação da Itália e para
a estabilidade política de qualquer principado, seria necessário um príncipe
focado na conquista e manutenção inteligente do poder. Quais virtudes políticas
são necessárias à manutenção inteligente do poder? Desenvolveremos nossa
resposta a essa interrogação investigativa
por meio de dois itens. O
primeiro, sobre o
método empregado por Maquiavel na análise da realidade política
de seu tempo.
O segundo, sobre
o que consideramos ser o elemento
cognitivo e político central da análise política de Maquiavel em O Príncipe, a
saber, as conexões entre inteligência política e manutenção do poder.
1.Método empregado por Maquiavel em O
Príncipe
Maquiavel
escreve O Príncipe com uma intenção específica, dirigida, um livro endereçado
ao Magnífico Lourenço de Médicis, a quem
explica que não oferecerá “cavalos, armas,
ricos tecidos e
pedras preciosas”, mas um presente
diferente, seu “conhecimento das
ações dos homens com poder”,
ao qual chegou
pela sua “longa experiência” direta como secretário
político de Florença, e pelo “estudo do mundo antigo” (1996, p.09). Suas
análises sobre as relações reais de poder, e sobre a natureza do povo e dos
príncipes nas suas relações políticas - objeto central de O Príncipe -, Maquiavel
as reuniu “em um pequeno volume” (Ibidem, p.09) e as enviou a Lourenço de
Médicis para que tal volume o ajudasse a realizar “grandes metas” (Ibidem,
p.10). De qual grande meta se tratava? A
isso ele retornará no capítulo final de O Príncipe, intitulado “Exortação para retomar a
Itália e libertá-la
dos bárbaros”, onde
afirma que, segundo
sua avaliação, chegara o
momento favorável para
que um “novo
príncipe”, “prudente e
valoroso” (Ibidem, p.151) pudesse agir para superar as divisões da península
itálica.
Esse
era o objetivo que levou Maquiavel a escrever O Príncipe. Suas análises das relações
políticas de poder, seu realismo metodológico típico, inserem-se nessa moldura idealista
do Maquiavel italiano patriota que deseja que seja construída
aquela pátria unificada que ainda
não existe na prática, na península itálica dividida politicamente. “Eu amo a
minha pátria mais
do que a alma”, revelou
expressamente Maquiavel (apud PIZZORNI, 1989, p.48). E é nessa
moldura patriótica ideal, utópica da unificação da Itália que está inserido o
quadro de sua análise da política real. Ora, não vamos aqui analisar a história
da moldura. Vamos analisar o quadro, as análises de conteúdo elaboradas por
Maquiavel, que se tornaram
clássicas, permanentes. As
análises políticas que o secretário florentino fez pensando em sua utilidade local, conjuntural,
foram reconhecidas como válidas em
outros espaços e tempos políticos.
Em
O Príncipe, Maquiavel identificou e analisou alguns elementos do núcleo cognitivo
central da complexidade das relações políticas de poder que tornaram sua obra célebre,
vital, atual na compreensão científica das relações materiais de poder, e que
ele apresentou por meio de classificações, tipologias políticas fundadas em
suas experiências políticas como secretário florentino e em suas leituras da história
política. De fato, para Villari, “a base
científica” do “sistema
científico” de Maquiavel
é ao mesmo
tempo teórica e prática,
“se funda na
experiência e na
história, a segunda
continuamente reconfirmando as conclusões da primeira” (1989, p.21).
A opção
de Maquiavel por
uma metodologia indutiva, ou seja,
que a partir
da análise da realidade elabora uma sua interpretação - exercício
metodológico praticado ao logo de todo o Príncipe - é explicitada no Capítulo
XV da obra, no qual analisa as relações dos príncipes com súditos e aliados:
Como sei
que muitos escreveram
sobre esse assunto,
creio que serei considerado presunçoso, sobretudo porque
discordarei da opinião dos outros. Mas como tenho a intenção de escrever algo
útil para quem a queira entender, pareceu-me conveniente ir atrás da verdade
efetiva da coisa, em vez da
imaginação. Muitos imaginaram
repúblicas e principados que nunca
se viu nem se soube que fossem verdadeiros por serem tão diversos de como se
vive para como se deveria viver. Aquele que deixa o que se faz pelo que se
deveria fazer aprende a se arruinar em vez de se preservar (1996, p.91).
A
coisa, real, material é que interessa a Maquiavel, posição diferente da
metafísica política, com foco em ideias e ideais em vez de coisas, reais. Para ele, o ideal precisa se
sustentar no real.
Em
tal Capítulo XV, Maquiavel sustenta que trocar a busca da compreensão do que se
faz, pela compreensão do dever ser, é um erro político-metodológico que pode
ser fatal para
o príncipe. Assim,
ele não nega o ideal
(projeto) político, mas rejeita a
inversão da ordem metodológica que troca a prioridade da análise do que se faz
pela adesão, sem sustentação na análise fática, ao que se deveria fazer.
Essa metodologia
maquiaveliana para a qual são fantasias os
projetos sem sustentação no
estudo da realidade,
considera a ética
descritiva (compreensão do comportamento real) prioritária em relação à
metafísica normativa, e elabora também ela uma ética (indutiva) normativa, a
indicação do que um príncipe sábio deve fazer para a manutenção inteligente do
poder, analisando seus custos, mas a partir da análise do comportamento
político real, sem ter como ponto de partida o que poderia ser um
amordaçamento da compreensão
do real pela imposição de
uma metafísica normativa a
priori, sem conexão vital com a realidade de fato. E é com tal metodologia indutiva,
com suas classificações e tipologias, presente em todo O Príncipe, não apenas no
Capítulo XV, que Maquiavel fará suas análises políticas sobre as relações
materiais de poder.
2.Conexões entre inteligência política e
manutenção do poder
Apesar de
tantas traduções e reedições,
a obra O Príncipe ainda continua sendo compreendida
mais pelo que não é do que pelo que é. O Príncipe não é um manual de maldades
políticas necessárias para a manutenção do poder a qualquer custo. Não é um
receituário de crueldades políticas que seriam coercitivas.
Maquiavel
não foi maquiavélico, no sentido apresentado por vários dicionários da língua portuguesa: maldoso,
perverso, diabólico, e
nunca escreveu a
frase “os fins
(bons) justificam (o emprego
de) os meios
(imorais)”. Maquiavel foi
um idealista realista: elaborou de forma indutiva uma
síntese analítico-descritiva das relações reais, materiais de poder (seu
realismo) em função do seu objetivo ideal, político-nacional: a unificação da
península itálica.
Maquiavel
não separou a política da moral, mas da moral política metafísica de seu tempo.
Assim, O Príncipe não é um livro de amoralidade ou de imoralidade política, mas
um livro sobre o comportamento moralmente correto do príncipe virtuoso, segundo
as “virtudes políticas” (CROCE, 1931, p.181) necessárias do ponto de vista da
cognição da realidade e da ação política do príncipe prudente, resoluto na
manutenção inteligente do poder (dever moral-político do príncipe sábio).
O
Príncipe é um tratado involuntário sobre a conquista e manutenção inteligente do
poder. Maquiavel analisa várias situações de conquista, perda e manutenção do
poder e identifica o perfil político ideal do novo príncipe (politicamente
virtuoso) que unificaria a Itália e seria capaz de mantê-la estavelmente unida.
A
preocupação de Maquiavel com a conquista e manutenção inteligente do poder revela
a sua quase obsessão pela ordem política, pela estabilidade política, pela
unidade política nacional que
ele almejava indicar
como construir por
meio do estudo
das experiências de unidade (ou não-unidade) política dos principados
reais por ele analisados sob tal ótica
da unidade política
do principado como
referência para a
construção da unidade política
nacional da Itália.
Para Maquiavel,
o bom governo,
o bom principado
é aquele que
dura, resiste, supera as adversidades, é aquele dotado de unidade-estabilidade política pelas vias da virtude política e bom
aproveitamento das ocasiões (fortuna). Tal estabilidade-unidade política gera
felicidade nos principados:
“enobreceram a própria
pátria e deixaram-na
felicíssima” (1996, p.39)[1].
Maquiavel,
portanto, não defende a tirania, mas uma estabilidade
inteligente e firme, fundada na
análise da complexidade das relações entre governantes e governados, na análise
da complexidade da gestão do poder, com o dever de sobreviver politicamente na
mutabilidade dos interesses, dos humores coletivos, dos ânimos acirrados num
cenário de disputas permanentes. Nesse cenário de conflitos, o pensador florentino
não sustenta simploriamente a manutenção do poder a qualquer custo, mas indica
que seja feita uma análise detalhada, profunda, séria da complexidade e previsibilidade
dos custos políticos desejados ou indesejados decorrentes das decisões a serem
tomadas.
Em
O Príncipe está contida a obrigação moral-política, coercitiva, de se governar com
inteligência e firmeza, pela durabilidade e estabilidade do seu território
político de governo. Tal regra moral forte, permanente em O Príncipe
desautoriza a crítica segundo a qual tal livro seria amoral, ou mesmo imoral.
Trata-se, em suma, de um livro sobre o dever moral-político da manutenção
(estabilidade) inteligente do poder conquistado. De fato, já no primeiro
capítulo de O Príncipe, Maquiavel estabelece diferenças entre principados
adquiridos (novos principados)
e os principados
hereditários ou herdados, sob a
ótica da norma da estabilidade do Estado-principado. Para ele, “nos Estados
hereditários e acostumados à presença da família de seu príncipe, as dificuldades para
manter o poder
são muito menores
se comparadas às
que podem se apresentar para mantê-lo em um principado
novo” (1996, p.15). Para isso, “é suficiente que o príncipe não abandone os
modos de governo de seus predecessores” (Ibidem, p.15), pressupondo que
junto com o
principado, seria herdada
pelo príncipe novo
também a estabilidade alcançada
por seu predecessor.
Essas
classificações, descrições, tipologias referem-se aos principados herdados ou
novos, como afirmamos, e, também, a outras temáticas fáticas como a diferença
entre principado civil e principado eclesiástico; diferença entre principados
novos conquistados com armas próprias, ou armas alheias, sendo que, em caso de
principados com armas alheias, Maquiavel analisa a situação de principados que
usam milícias mercenárias ou exércitos auxiliares, destacando que “um príncipe
sábio sempre foge destas milícias e utiliza as suas próprias. Prefere perder
com as suas a vencer com a dos outros” (Ibidem, p.82). Discorre, também, por
meio de comparações, sobre as relações entre fortalezas e manutenção do poder,
identificando as situações onde elas são mais ou menos necessárias (Capítulo
XX).
Segundo
a ética política normativa de O Príncipe, o poder conquistado deve ser mantido.
Mas de que forma? A qualquer custo? Maquiavel sustenta que a manutenção do poder é
uma necessidade, um
dever do qual
derivam outros deveres
relacionados à capacidade do
príncipe de descrever,
interpretar e avaliar
o contexto político caracterizado por
disputas e variações
de interesses e
humores coletivos dos
sujeitos envolvidos nessas disputas.
Dessa forma, em
síntese, o que
Maquiavel sugere para a
realização de seu objetivo maior (unificação da Itália) é a figura-ideal do
príncipe sábio e corajoso, cujo perfil ele identifica nos casos que analisou de
gestão do poder caracterizada pela
estabilidade (manutenção do
poder). O perfil político
ideal de príncipe
montado indutivamente por Maquaivel
não é o
do príncipe perverso,
cruel, maquiavélico, que busca a manutenção do poder a qualquer
custo, mas o do príncipe inteligente e corajoso, ou seja, maquiaveliano, que
analisa os custos políticos previstos e indesejáveis de suas ações pela
estabilidade-unidade política do Estado-principado (manutenção do poder), tomando decisões
resolutas orientadas por tal cálculo de inteligência política.
2.1.O príncipe ideal segundo Maquiavel
Ao
longo de todo O Príncipe emerge essa relação entre manter o poder “de forma segura
e duradoura” (1996, p.19), e as habilidades (virtudes políticas) necessárias
para a realização de tal meta política fundamental. O príncipe ideal supera “as
dificuldades e as oposições que estão em seu caminho” (Ibidem, p.125). Ele é
sábio, prudente, corajoso, determinado,
com “ânimo forte
e ambições grandes”
(Ibidem, p.51), ou
seja, não é incauto,
ingênuo, pusilânime, irresoluto,
hesitante. Não escolhe
a neutralidade: “é um amigo
verdadeiro ou um inimigo verdadeiro” (Ibidem, p.130). Maquiavel cita o exemplo da
tuberculose como metáfora política dos “assuntos de Estado”: “No início o mal é
fácil de curar e
difícil de diagnosticar.
Mas, com o
passar do tempo,
não tendo sido
nem reconhecida nem
medicada, torna-se fácil
de diagnosticar e difícil
de curar” (Ibidem, p.22). O príncipe sábio é capaz de
prever-identificar os males políticos antes que cresçam e torne-se impossível
remediá-los, mas sua principal característica é não ser odiado pelo povo. O
príncipe sábio, prudente, firme tem o povo a seu favor. De fato, para
Maquiavel,
de um
povo inimigo, o
príncipe nunca poderá
se proteger por serem muitos. Dos nobres poderá, pois são
poucos (...). O príncipe necessita viver
sempre com aquele
mesmo povo, mas
não precisa dos
nobres, podendo fazer e
desfazer, qualquer dia, tirar e
dar prestígio, como melhor lhe parecer (Ibidem, p.60).
Portanto,
não é conforme o pensamento de Maquiavel a interpretação segundo a qual um
príncipe deveria governar
com crueldade, manter
o povo permanentemente aterrorizado para
poder manter o
poder. Para o
secretário florentino, “quem
se tornar príncipe pelos favores
do povo deve mantê-lo amigo” e, de outro lado, “quem se tornar príncipe com os
favores dos grandes e contra o povo deve, antes de tudo, tentar conquistá-lo, o
que é fácil,
se o proteger”
(Ibidem, p.61). Em
suma, para ele,
“a um príncipe
é necessária a amizade do povo, do contrário, não terá salvação na
adversidade” (Ibidem, p.62).
No capítulo
XX, tratando sobre
as fortalezas como
instrumentos de proteção, Maquiavel destacará
que “a melhor
fortaleza que existe
é não ser odiado
pelo povo. Porque, mesmo que
tenhas fortalezas, se o povo sentir ódio por ti, elas não te salvarão”, dado que
“nunca faltarão estrangeiros
para ajudar o povo rebelado”
(Ibidem, p.128). Argumento que
vale também na
defesa do príncipe
contra as conspirações,
pois elas necessitam do apoio
popular para progredirem: “um dos remédios mais poderosos que um príncipe pode
ter contra uma conspiração é não ser odiado por todos”, pois “quem conspira
acredita que, com a morte do príncipe, irá satisfazer o povo”, e sem apoio do povo
o conspirador sabe que não conseguirá realizar seu objetivo político (Ibidem,
p.110). E ainda: “um príncipe que possua uma cidade forte e não seja odiado não
pode ser atacado e, se o fosse, quem o atacasse partiria envergonhado” (Ibidem,
p.66).
Para
Maquiavel, o príncipe sábio, cauto, firme compreende que a manutenção do poder
necessita da “benivolenzia populare” (1988, p.95), do apoio do povo, ou
“consenso popular” (1996, p.111), segundo a tradução de Maria Cumo. Tal
príncipe, em suma, “deve estimar os nobres, mas não fazer-se odiar pelo povo”
(Ibidem, p.113).
Maquiavel
se dissocia assim do provérbio de seu tempo segundo o qual “quem se apoia no
povo, apoia-se na lama”, pois, a seu aviso, isso vale para o “cidadão privado
que pretenda ser libertado pelo povo” (Ibidem, p.62). “Mas quando quem se apoia
no povo”, pondera Maquiavel, “é um príncipe que sabe comandar, que tem bom
coração, que não se assusta na adversidade, que sabe administrar a sua cidade e
com o seu ânimo e as suas leis exorta o povo, nunca será enganado por ele e
terá feito boas fundações” (Ibidem, p.62).
Em tal ponderação,
percebe-se explicitamente o que já
se encontra de
forma implícita em outras passagens de O Príncipe: segundo Maquiavel,
para a manutenção do poder, o príncipe
ideal, que é
sábio, cauto, prudente,
firme necessita de
um conjunto complexo, interligado
de virtudes políticas tais como saber comandar, ter bom coração, não se
assustar na adversidade, saber administrar sua cidade com ânimo e na
legalidade. Constatações maquiavelianas. Diferentes das interpretações maquiavélicas que ainda persistem no senso
comum.
2.2.O príncipe, o povo e os custos
políticos da manutenção do poder
É justamente
a construção da “benivolenzia populare” (1988, p.95, 96) um dos critérios
fundamentais que orientam o príncipe sábio, prudente e firme de Maquiavel nos seus
cálculos dos custos previstos e imprevistos das tomadas de decisão políticas
pela manutenção inteligente da unidade política. A partir de tal critério,
Maquiavel constatará que o príncipe
que gasta demais
transformará o contentamento
popular imediato em descontentamento desestabilizador, uma vez
que provavelmente terá de adotar políticas de
contenção de despesas
para compensar sua
liberalidade econômica antecedente, transformando o humor favorável
em desfavorável (Capítulo XVI, 1996, p.95-98). Por isso, Maquiavel considerará
politicamente virtuoso o príncipe parcimonioso, avaliando a parcimônia como
instrumento mais adequado
que a liberalidade
na relação política exitosa entre “benivolenzia populare”
e estabilidade do poder.
Segundo
Maquiavel, há uma relação de recíproca dependência, necessidade, entre príncipe e povo.
Para ele, “um
príncipe sábio deve
pensar no modo
em que os seus
cidadãos, sempre e
em qualquer tempo,
precisem do Estado
e dele. Assim,
ser-lhe-ão sempre fieis” (1996,
p.63). A relação
entre príncipe e
povo, segundo o
pensador florentino, não é uma relação de amor romântico, mas uma
relação de compartilhamento de interesses materiais interdependentes, uma
relação de recíproca sobrevivência. Nessa relação fática
funda-se a conexão
delicada, complexa entre
manutenção do poder (estabilidade política), proteção
recíproca e consenso ou “benivolenzia populare”.
Dessa
forma, diferente do príncipe que vive voltado para “os prazeres da vida”
(Ibidem, p.87), “ocioso”
(Ibidem, p.90), “efeminado
e pusilânime” (Ibidem,
p.92), Maquiavel destaca que o príncipe virtuoso é exitoso porque
asceta: conquista as virtudes políticas
necessárias para a
manutenção inteligente do poder, liderando
suas forças militares (Capítulo
XIV), exercitando-se na ciência e arte da conquista e manutenção da estabilidade
política, por meio das virtudes políticas, com o aproveitamento das ocasiões (fortuna).
Em tempos de paz, tal príncipe asceta se prepara para as prováveis adversidades
“com ações e
com a mente”
(Ibidem, p.88), “de
modo que a
sorte, quando mudar, encontre-o pronto para resistir”
(Ibidem, p.90). Para Maquiavel, “quanto ao exercício da mente, o príncipe deve
ler livros de história, refletir sobre os atos dos grandes homens. Ver como
foram conduzidas as guerras, examinar os motivos de suas vitórias e derrotas para
destas fugir e imitar as primeiras” (Ibidem, p.89). O estudo, portanto, não
para a ilustração aristocrática, mas como exercício vital de virtude política
para a manutenção inteligente do poder.
2.3.O ser humano nas relações de poder
segundo Maquiavel
No perfil
ideal do príncipe
construído por Maquiavel,
calculista na busca
da manutenção do poder, está contida sua compreensão moral sobre a
natureza humana, para ele ambígua, mutável, variável. Dessa forma, emerge que o
realismo de Maquiavel possui duas notas típicas: é realismo metodológico (ele
busca de modo indutivo a verdade efetiva da coisa) e realismo
político-antropológico: sustenta que o ser humano (súditos e nobres) é de humor
variável conforme a realização ou não de seus interesses materiais, revelando o
que é ou representando o que não é.
Maquiavel,
ao afirmar que o príncipe desenvolve suas atividades de poder “entre tantos que
não são bons” (1996, p.91), caracteriza o lugar político do príncipe como lugar
ameaçado pelas possibilidades constantes de traição, mentira, falsidade,
não-fidelidade entre súditos e nobres aliados. Por isso, para o secretário
florentino, o príncipe inteligente é prudente, identifica e interpreta o humor
real dos seus interlocutores, tomando decisões fundadas nessa interpretação. Em
situações de humor desfavorável, “para um príncipe é necessário, querendo se
manter, aprender a poder ser não bom e usar ou não usar isso, conforme precisar”
(Ibidem, p.91-92). O
príncipe sábio, portanto,
não é ingênuo,
é prudente, ou melhor,
na inteligência indutivo-analítica do
príncipe está contida
a prudência política, com seus cálculos de probabilidade, com sua
capacidade de prever o péssimo que mesmo sendo indesejado é provável.
Ser
“não bom” não significa ser mal, como infelizmente encontramos em algumas traduções
equivocadas de O Príncipe em língua portuguesa. No texto original, lemos: “Onde
è necessario a
uno principe, volendosi mantenere,
imparare a potere essere non buono, et usarlo e non usare secondo la necessita”
(1988, p.83). Assim, Maquiavel não recomenda que o príncipe seja mau, mas firme,
resoluto, não-ingênuo, prudente,
não-bom. Para se defender de cidadãos particulares, poderia e deveria
usar as medidas previstas nas leis contra conspirações, o que na época
significava inclusive aplicar a pena de morte. Mas a relação com o povo
(súditos) é mais complexa. Se Maquiavel recomendasse ao príncipe de agir com
maldade contra o povo, como método de manutenção do poder, ele estaria negando a
lógica geral de seu livro: “a um príncipe é necessária a amizade do povo, do
contrário, não terá salvação na adversidade” (1996, p.62); “a melhor fortaleza
que existe é não ser odiado pelo povo” (Ibidem, p.128).
Em
tal quadro hermenêutico compreende-se a pergunta do Capítulo XVII: deve um
príncipe ser amado ou temido? O que significa ser temido? Seria o mesmo que ser
odiado? E por
quem ser temido,
por cidadãos privados,
nobres, ou pela
maioria dos súditos? Maquiavel
inicia o capítulo
XVII sustentando justamente
que “todo príncipe deve
desejar ser considerado
clemente e não
cruel”, usando, porém,
a clemência com prudência, pois a “piedade excessiva”
pode permitir “desordens” (Ibidem, p.99). Sobre o príncipe prudente, destaca
“que a excessiva confiança não o torne incauto e a excessiva desconfiança não o
torne intolerável” (Ibidem, p.100).
A
resposta de Maquiavel é que é melhor ser amado e temido, mas destaca que
“é muito mais
seguro ser temido
do que amado,
no caso de
ser preciso renunciar a um dos
dois” (Ibidem, p.100). O significado de ser temido, porém, não é o mesmo de ser
odiado. De fato, para ele, “o príncipe deve se fazer temer de um modo que, se
não conquista o amor, evita o ódio. É possível ser, ao mesmo tempo, temido, mas
não odiado” (Ibidem, p.101)[2]. Dessa
forma, ser temido pode ser interpretado como agir com a firmeza necessária para
ser respeitado, sem ultrapassar o limite da crueldade, que atrairia o ódio,
rejeitado por Maquiavel na lógica das virtudes políticas do príncipe ideal. Mas
por qual
motivo o secretário
florentino sustenta a
necessidade de firmeza
resoluta, de respeito coercitivo?
A motivação de
Maquiavel é sempre
a busca da
manutenção inteligente do poder,
evitando as desordens
derivadas da ingenuidade, um dos ingredientes negativos
(politicamente não-virtuoso) do príncipe hesitante,
pusilânime, que não aprendeu a identificar o
humor político real dos seus interlocutores,
eventualmente camuflado em uma representação apenas aparentemente favorável ao príncipe. E a explicação dessa
representação política (falsificação), encontra-se na interpretação moral de Maquiavel
sobre a ambiguidade da natureza humana:
Geralmente, pode-se
dizer que os homens são
ingratos, volúveis, mentirosos,
traiçoeiros, covardes, ávidos por dinheiro. Se lhes fazes o bem, todos estão
contigo. Oferecem-te o sangue, as coisas, a vida, os filhos, como disse antes,
quando a necessidade está longe de ti.
Mas quando a necessidade chega perto, eles se rebelam. E o príncipe que havia
se baseado completamente nas palavras deles, se não tiver outras defesas,
arruína-se (1996, p.100-101).
A
aliança política de um príncipe com o povo, portanto, é necessária, mas não pode ser
incauta. Para a
sustentação da unidade
política do principado, em caso de adversidade política,
o ser temido é ingrediente necessário, obrigatório, mas no sentido de não ser
odiado, pois o ódio, diferente do temor, segundo a hermenêutica política de Maquiavel,
acelera a ruína política em vez de superá-la: o príncipe sábio e prudente “deve
somente cuidar para fugir do ódio” (Ibidem, p.103)[3].
Segundo Maquiavel,
portanto, os seres
humanos são moralmente
ambíguos, podendo agir com bondade ou com maldade. Ao afirmar que “os
homens esquecem mais rápido a morte do pai do que a perda do patrimônio” (1996,
p.101), ele recomenda que não se toque em seus bens, pois isso provoca ódio, ou
seja, mais uma justificativa para o emprego da inteligência política fundada na
prudência, que, em algumas situações, “consiste
em saber reconhecer as qualidades dos inconvenientes e ver o menos prejudicial como
sendo bom” (Ibidem, p.133)[4].
A
palavra “prudência” é frequente em O Príncipe, e Maquiavel usa também o termo
“prudentíssimos” (1996, p.137) ao
destacar a necessidade de os príncipes defenderem-se dos “aduladores, dos quais
as cortes estão repletas”, e que ele classifica como sendo uma “peste” (Ibidem,
p.137). Porém, há também o perigo oposto, que é o de permitir que todos digam a
verdade ao príncipe, pois “quando todos podem te dizer a verdade, falta-te a
reverência” (Ibidem, p.137). Entre a adulação
e a disseminação de conselheiros sinceros, segundo Maquiavel
um
príncipe prudente deve escolher uma terceira
solução, elegendo homens sábios
para o seu governo. Só a eles deve permitir que digam a verdade e só a respeito
do que lhes perguntar e nada mais. Mas deve lhes perguntar sobre tudo, ouvir a
opinião deles para depois deliberar sozinho, como achar certo (Ibidem, p.137).
A
sabedoria do príncipe, porém, segundo Maquiavel, não está nos conselhos que ouve.
“Um príncipe que não seja sábio nunca ouvirá conselhos uníssonos, nem saberá sintetizá-los”,
continua o pensador florentino, que conclui tal observação destacando que “os
bons conselhos, de onde quer que provenham, nascem da prudência do príncipe e
não a prudência do príncipe dos bons conselhos” (Ibidem, p.139).
Considerações conclusivas
A
maior virtude cognitiva de um príncipe, portanto, é sua inteligência indutivo-hermenêutica, associada
à prática da prudência e “firmeza de ânimo” (Ibidem, p.113).
Na
concretização de tal firmeza resoluta pela manutenção inteligente e prudente do poder,
Maquiavel sugere que o príncipe
sábio e prudente
governe unindo em
si a sutileza da
raposa, que descobre
as armadilhas camufladas, e
a força firme
do leão, sabendo quando usar uma
ou outra dessas duas modalidades diferentes e complementares de força política.
O príncipe
virtuoso, portanto, não é o
príncipe odiado, não
é o que
busca a manutenção do poder a
qualquer custo. O príncipe virtuoso não é “odioso e desprezível”, e ele
“torna-se desprezível quando
é considerado volúvel,
superficial, efeminado, pusilânime,
indeciso” (Ibidem, p.109). Maquiavel constatou, em síntese, que “o ódio e o desprezo
foram a razão da ruína” de muitos príncipes (Ibidem, p.121). Assim, nem odioso nem desprezível,
mas sábio, prudente,
resoluto para “conquistar
e manter o
Estado” (Ibidem, p.108); mantê-lo “bem ordenado” (Ibidem, p112) e
“seguro” (Ibidem, p.127).
Em
suma, manutenção inteligente do poder, ancorada em cálculos permanentes de
previsibilidade dos custos políticos das tomadas de decisão sob a ótica da
realização da “benivolenzia populare” (1988, p.95, 96) em função da
estabilidade do principado.
Bibliografia
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Benedetto. Etica e politica. Bari: Laterza, 1931.
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Maquiavel e sua época. In: Revista história viva: Maquiavel – o gênio de
Florença. São Paulo: Duetto, n. 15, 2006.
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Reginaldo. Storia delle dottrine politiche. Roma: 1989.
VILLARI,
Pasquale. Lo spirito dei tempi. In: Niccolò
Machiavelli – Opere. Milão: Gherardo Casini Editore, 1989, p.17-25.
[1] “donde la loro patria ne fu
nobilitata e diventò felicissima” (1988, p.47).
[2] “Debbe non di manco el principe
farsi temere in modo, che, se non acquista lo amore, che fugga l’odio; perché
può molto bene stare insieme esser temuto e non odiato” (1988, p.89).
[3] “Debbe solamente ingegnarsi di
fuggire lo odio” (1988, p.90).
[4] “La prudenzia consiste in sapere
conoscere le qualità delli inconvenienti, e pigliare el men tristo per buono”
(Ibidem, p.111).