quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Maquiavel não foi maquiavélico




Inteligência Política e Manutenção do Poder 
em Nicolau Maquiavel (anotações)

por Fábio Régio Bento

O Príncipe, escrito em 1513 e publicado em 1531, quatro anos depois da morte de Nicolau Maquiavel (1469-1527), após mais de cinco séculos de sua redação continua sendo reproposto permanentemente por meio de várias traduções, nem sempre coerentes com o texto de 1513. De fato, como constatou Marques  (2006,  p.41),  o  Maquiavel  de  O  Príncipe  ainda  continua  sendo  apresentado  como  “um professor do mal”. Ao contrário, porém, do que afirma o senso comum, o secretário florentino não foi maquiavélico.

Neste  artigo, por meio do estudo direto de O Príncipe com o texto em  italiano  de  1513 (MACHIAVELLI, 1988), e com o auxílio da tradução de Maria Lucia Cumo (MAQUIAVEL, 1996), analisaremos as conexões em O Príncipe entre inteligência política e manutenção virtuosa do poder, sustentando que O Príncipe não é um livro amoral, nem imoral, mas de moral política da manutenção inteligente do poder segundo o que Maquiavel compreende por virtudes políticas.

Em 1513, quando Maquiavel escreveu O Príncipe, a Itália ainda não existia na forma política como a conhecemos hoje. Havia um território denominado península Itália e um idioma relativamente compartilhado, criado séculos antes por Dante Alighieri. A unidade da Itália ainda era um sonho político, uma utopia, entendida como projeto, meta a ser realizada. Na Europa, Portugal, Espanha, França já haviam  unificado suas monarquias, mas na Itália ainda não havia unidade nacional. De fato, na  época  de Maquiavel “a Itália estava dividida em cinco grandes Estados: 1) o Reino de Nápoles, ao sul; 2) os Estados Pontifícios e 3) a República de Florença, ao centro; 4) a República de Veneza e 5) o Ducado de Milão, ao norte” (PIZZORNI, 1989, p.41). Nesse contexto de não-unidade nacional, de dominação estrangeira, Maquiavel ambiciona a unidade política nacional da península itálica sob a forma de uma monarquia nacional comandada por um príncipe novo, sábio, prudente, corajoso que viria da casa dos Médicis. Como resumiu Mario D’Addio (1995, p.298),

a exortação dirigida a Lourenço de Médicis no capítulo final do Príncipe, para que  ele  assuma  a  iniciativa  de  liberar  a  Itália  do  estrangeiro,  mediante  a  constituição de um Estado forte italiano na Itália centro-setentrional, demonstra que  a  análise  conduzida  no  Príncipe  se  traduz  no  final  em  um  específico programa de ação política.

Ora, o sonho de Maquiavel, como sabemos, ocorrerá somente mais de três séculos depois, no final de 1800, com a proclamação do Reino da Itália. Como explicar o sucesso inoxidável  de  O  Príncipe,  meio  século  depois  de  sua  redação,  dado  que  nem  mesmo realizou o objetivo imediato ad hoc para o qual foi escrito? Explica-se o sucesso científico e político de O Príncipe a partir da compreensão da palavra “clássico”, que significa de valor permanente. Assim, o que é que tem valor permanente em O Príncipe? Sua intenção era identificar o perfil  do príncipe ideal para a construção de uma monarquia nacional que unificasse politicamente a península itálica. Para isso, ele elaborou uma sua análise das relações políticas, com emprego de um método  original e com a elaboração de conteúdos políticos também diferentes dos de seu tempo.

Tal método e conteúdo de Maquiavel, em O Príncipe, tornaram-se de interesse geral, permanente. O que ele escreveu ad hoc para o príncipe que unificaria a Itália, conforme seu desejo político, permaneceu como clássico da ciência e da política prática. Mas o que há de original e permanente (clássico) em O Príncipe? Para o italiano Benedetto Croce (1931, p.181), “contra os que concebiam o Estado como instituto moral e religioso submisso às regras da piedade cristã, convinha gritar  que  os  Estados  não  se  governam  com  os  pais-nossos; e que exigem, em vez, virtudes”.

As virtudes políticas do príncipe ideal, segundo Maquiavel, são as necessárias à realização de seu objetivo principal. Assim, para a unificação da Itália e para a estabilidade política de qualquer principado, seria necessário um príncipe focado na conquista e manutenção inteligente do poder. Quais virtudes políticas são necessárias à manutenção inteligente do poder? Desenvolveremos nossa resposta a essa interrogação investigativa  por  meio de dois itens.  O  primeiro,  sobre  o  método  empregado  por Maquiavel na análise da realidade  política  de  seu  tempo.  O  segundo,  sobre  o  que consideramos ser o elemento cognitivo e político central da análise política de Maquiavel em O Príncipe, a saber, as conexões entre inteligência política e manutenção do poder.


1.Método empregado por Maquiavel em O Príncipe

Maquiavel escreve O Príncipe com uma intenção específica, dirigida, um livro endereçado ao Magnífico  Lourenço de Médicis, a quem explica que  não  oferecerá “cavalos,  armas,  ricos  tecidos  e  pedras  preciosas”, mas um  presente  diferente,  seu “conhecimento das ações dos homens  com  poder”,  ao  qual  chegou  pela  sua  “longa experiência” direta como secretário político de Florença, e pelo “estudo do mundo antigo” (1996, p.09). Suas análises sobre as relações reais de poder, e sobre a natureza do povo e dos príncipes nas suas relações políticas - objeto central de O Príncipe -, Maquiavel as reuniu “em um pequeno volume” (Ibidem, p.09) e as enviou a Lourenço de Médicis para que tal volume o ajudasse a realizar “grandes metas” (Ibidem, p.10).  De qual grande meta se tratava? A isso ele retornará no capítulo final de O Príncipe, intitulado “Exortação para retomar  a  Itália  e  libertá-la  dos  bárbaros”,  onde  afirma  que,  segundo  sua  avaliação, chegara  o  momento  favorável  para  que  um  “novo  príncipe”,  “prudente  e  valoroso” (Ibidem, p.151) pudesse agir para superar as divisões da península itálica.

Esse era o objetivo que levou Maquiavel a escrever O Príncipe. Suas análises das relações políticas de poder, seu realismo metodológico típico, inserem-se nessa moldura idealista do Maquiavel italiano patriota que deseja que seja  construída  aquela  pátria unificada que ainda não existe na prática, na península itálica dividida politicamente. “Eu amo  a  minha  pátria  mais  do  que a alma”, revelou expressamente  Maquiavel  (apud PIZZORNI, 1989, p.48). E é nessa moldura patriótica ideal, utópica da unificação da Itália que está inserido o quadro de sua análise da política real. Ora, não vamos aqui analisar a história da moldura. Vamos analisar o quadro, as análises de conteúdo elaboradas por Maquiavel, que  se  tornaram  clássicas,  permanentes. As análises políticas que o secretário florentino fez pensando em sua utilidade local,  conjuntural,  foram  reconhecidas como válidas em outros espaços e tempos políticos.

Em O Príncipe, Maquiavel identificou e analisou alguns elementos do núcleo cognitivo central da complexidade das relações políticas de poder que tornaram sua obra célebre, vital, atual na compreensão científica das relações materiais de poder, e que ele apresentou por meio de classificações, tipologias políticas fundadas em suas experiências políticas como secretário florentino e em suas leituras da história política. De fato, para Villari,  “a  base  científica”  do  “sistema  científico”  de  Maquiavel  é  ao  mesmo  tempo teórica  e  prática,  “se  funda  na  experiência  e  na  história,  a  segunda  continuamente reconfirmando as conclusões da primeira” (1989, p.21).

A  opção  de  Maquiavel  por  uma metodologia indutiva,  ou  seja,  que  a  partir  da análise da realidade elabora uma sua interpretação - exercício metodológico praticado ao logo de todo o Príncipe - é explicitada no Capítulo XV da obra, no qual analisa as relações dos príncipes com súditos e aliados:
Como  sei  que  muitos  escreveram  sobre  esse  assunto,  creio  que  serei considerado presunçoso, sobretudo porque discordarei da opinião dos outros. Mas como tenho a intenção de escrever algo útil para quem a queira entender, pareceu-me conveniente ir atrás da verdade efetiva da coisa, em vez da   imaginação.  Muitos  imaginaram  repúblicas  e principados que nunca se viu nem se soube que fossem verdadeiros por serem tão diversos de como se vive para como se deveria viver. Aquele que deixa o que se faz pelo que se deveria fazer aprende a se arruinar em vez de se preservar (1996, p.91).

A coisa, real, material é que interessa a Maquiavel, posição diferente da metafísica política, com foco em ideias e ideais em vez de  coisas, reais. Para ele, o ideal precisa se sustentar no real.

Em tal Capítulo XV, Maquiavel sustenta que trocar a busca da compreensão do que se faz, pela compreensão do dever ser, é um erro político-metodológico que  pode  ser  fatal  para  o  príncipe.  Assim,  ele  não  nega  o  ideal  (projeto)  político, mas rejeita a inversão da ordem metodológica que troca a prioridade da análise do que se faz pela adesão, sem sustentação na análise fática, ao que se deveria fazer.

Essa  metodologia  maquiaveliana  para  a  qual  são  fantasias  os  projetos  sem sustentação  no  estudo  da  realidade,  considera  a  ética  descritiva (compreensão do comportamento real) prioritária em relação à metafísica normativa, e elabora também ela uma ética (indutiva) normativa, a indicação do que um príncipe sábio deve fazer para a manutenção inteligente do poder, analisando seus custos, mas a partir da análise do comportamento político real, sem ter como ponto de partida o que poderia ser  um  amordaçamento  da  compreensão  do  real  pela  imposição  de  uma  metafísica normativa a priori, sem conexão vital com a realidade de fato. E é com tal metodologia indutiva, com suas classificações e tipologias, presente em todo O Príncipe, não apenas no Capítulo XV, que Maquiavel fará suas análises políticas sobre as relações materiais de poder.


2.Conexões entre inteligência política e manutenção do poder

Apesar  de  tantas  traduções e  reedições,  a  obra  O Príncipe ainda continua sendo compreendida mais pelo que não é do que pelo que é. O Príncipe não é um manual de maldades políticas necessárias para a manutenção do poder a qualquer custo. Não é um receituário de crueldades políticas que seriam coercitivas.

Maquiavel não foi maquiavélico, no sentido apresentado por vários dicionários da língua portuguesa:  maldoso,  perverso,  diabólico,  e  nunca  escreveu  a  frase  “os  fins  (bons) justificam  (o  emprego  de)  os  meios  (imorais)”.  Maquiavel  foi  um  idealista  realista: elaborou de forma indutiva uma síntese analítico-descritiva das relações reais, materiais de poder (seu realismo) em função do seu objetivo ideal, político-nacional: a unificação da península itálica.

Maquiavel não separou a política da moral, mas da moral política metafísica de seu tempo. Assim, O Príncipe não é um livro de amoralidade ou de imoralidade política, mas um livro sobre o comportamento moralmente correto do príncipe virtuoso, segundo as “virtudes políticas” (CROCE, 1931, p.181) necessárias do ponto de vista da cognição da realidade e da ação política do príncipe prudente, resoluto na manutenção inteligente do poder (dever moral-político do príncipe sábio).

O Príncipe é um tratado involuntário sobre a conquista e manutenção inteligente do poder. Maquiavel analisa várias situações de conquista, perda e manutenção do poder e identifica o perfil político ideal do novo príncipe (politicamente virtuoso) que unificaria a Itália e seria capaz de mantê-la estavelmente unida.

A preocupação de Maquiavel com a conquista e manutenção inteligente do poder revela a sua quase obsessão pela ordem política, pela estabilidade política, pela unidade política  nacional  que  ele  almejava  indicar  como  construir  por  meio  do  estudo  das experiências de unidade (ou não-unidade) política dos principados reais por ele analisados sob  tal  ótica  da  unidade  política  do  principado  como  referência  para  a  construção  da unidade política nacional da Itália.

Para  Maquiavel,  o  bom  governo,  o  bom  principado  é  aquele  que  dura,  resiste, supera  as adversidades,  é aquele dotado de  unidade-estabilidade política  pelas vias da virtude política e bom aproveitamento das ocasiões (fortuna). Tal estabilidade-unidade política  gera  felicidade  nos  principados:  “enobreceram  a  própria  pátria  e  deixaram-na  felicíssima”  (1996,  p.39)[1].

Maquiavel, portanto, não defende a  tirania, mas uma  estabilidade  inteligente  e firme, fundada na análise da complexidade das relações entre governantes e governados, na análise da complexidade da gestão do poder, com o dever de sobreviver politicamente na mutabilidade dos interesses, dos humores coletivos, dos ânimos acirrados num cenário de disputas permanentes. Nesse cenário de conflitos, o pensador florentino não sustenta simploriamente a manutenção do poder a qualquer custo, mas indica que seja feita uma análise detalhada, profunda, séria da complexidade e previsibilidade dos custos políticos desejados ou indesejados decorrentes das decisões a serem tomadas.

Em O Príncipe está contida a obrigação moral-política, coercitiva, de se governar com inteligência e firmeza, pela durabilidade e estabilidade do seu território político de governo. Tal regra moral forte, permanente em O Príncipe desautoriza a crítica segundo a qual tal livro seria amoral, ou mesmo imoral. Trata-se, em suma, de um livro sobre o dever moral-político da manutenção (estabilidade) inteligente do poder conquistado. De fato, já no primeiro capítulo de O Príncipe, Maquiavel estabelece diferenças entre  principados  adquiridos  (novos  principados)  e  os  principados  hereditários  ou herdados, sob a ótica da norma da estabilidade do Estado-principado. Para ele, “nos Estados hereditários e acostumados à presença da família de seu príncipe, as dificuldades  para  manter  o  poder  são  muito  menores  se  comparadas  às  que  podem  se apresentar para mantê-lo em um principado novo” (1996, p.15). Para isso, “é suficiente que o príncipe não abandone os modos de governo de seus predecessores” (Ibidem, p.15), pressupondo  que  junto  com  o  principado,  seria  herdada  pelo  príncipe  novo  também  a estabilidade alcançada por seu predecessor.

Essas classificações, descrições, tipologias referem-se aos principados herdados ou novos, como afirmamos, e, também, a outras temáticas fáticas como a diferença entre principado civil e principado eclesiástico; diferença entre principados novos conquistados com armas próprias, ou armas alheias, sendo que, em caso de principados com armas alheias, Maquiavel analisa a situação de principados que usam milícias mercenárias ou exércitos auxiliares, destacando que “um príncipe sábio sempre foge destas milícias e utiliza as suas próprias. Prefere perder com as suas a vencer com a dos outros” (Ibidem, p.82). Discorre, também, por meio de comparações, sobre as relações entre fortalezas e manutenção do poder, identificando as situações onde elas são mais ou menos necessárias (Capítulo XX).

Segundo a ética política normativa de O Príncipe, o poder conquistado deve ser mantido. Mas de que forma? A qualquer custo? Maquiavel sustenta que a manutenção do poder  é  uma  necessidade,  um  dever  do  qual  derivam  outros  deveres  relacionados  à capacidade   do   príncipe   de   descrever,   interpretar   e   avaliar   o   contexto   político caracterizado  por  disputas  e  variações  de  interesses  e  humores  coletivos  dos  sujeitos envolvidos  nessas  disputas.  Dessa  forma,  em  síntese,  o  que  Maquiavel  sugere  para  a realização de seu objetivo maior (unificação da Itália) é a figura-ideal do príncipe sábio e corajoso, cujo perfil ele identifica nos casos que analisou de gestão do poder caracterizada pela  estabilidade  (manutenção  do  poder).  O  perfil  político  ideal  de  príncipe  montado indutivamente  por  Maquaivel  não  é  o  do  príncipe  perverso,  cruel,  maquiavélico,  que busca a manutenção do poder a qualquer custo, mas o do príncipe inteligente e corajoso, ou seja, maquiaveliano, que analisa os custos políticos previstos e indesejáveis de suas ações pela estabilidade-unidade política do Estado-principado  (manutenção do poder), tomando decisões resolutas orientadas por tal cálculo de inteligência política.


2.1.O príncipe ideal segundo Maquiavel

Ao longo de todo O Príncipe emerge essa relação entre manter o poder “de forma segura e duradoura” (1996, p.19), e as habilidades (virtudes políticas) necessárias para a realização de tal meta política fundamental. O príncipe ideal supera “as dificuldades e as oposições que estão em seu caminho” (Ibidem, p.125). Ele é sábio, prudente, corajoso, determinado,  com  “ânimo  forte  e  ambições  grandes”  (Ibidem,  p.51),  ou  seja,  não  é incauto,  ingênuo,  pusilânime,  irresoluto,  hesitante.  Não  escolhe  a  neutralidade:  “é  um amigo verdadeiro ou um inimigo verdadeiro” (Ibidem, p.130). Maquiavel cita o exemplo da tuberculose como metáfora política dos “assuntos de Estado”: “No início o mal é fácil de  curar  e  difícil  de  diagnosticar.  Mas,  com  o  passar  do  tempo,  não  tendo  sido  nem  reconhecida  nem  medicada,  torna-se  fácil  de  diagnosticar  e  difícil  de  curar”  (Ibidem, p.22). O príncipe sábio é capaz de prever-identificar os males políticos antes que cresçam e torne-se impossível remediá-los, mas sua principal característica é não ser odiado pelo povo. O príncipe sábio, prudente, firme tem o povo a seu favor. De fato, para Maquiavel,

de  um  povo  inimigo,  o  príncipe  nunca  poderá  se  proteger por  serem muitos. Dos nobres poderá, pois são poucos (...). O príncipe necessita viver  sempre  com  aquele  mesmo  povo,  mas  não  precisa  dos  nobres, podendo  fazer  e  desfazer,  qualquer  dia,  tirar  e  dar  prestígio,  como melhor lhe parecer (Ibidem, p.60).

Portanto, não é conforme o pensamento de Maquiavel a interpretação segundo a qual  um  príncipe  deveria  governar  com  crueldade,  manter  o  povo  permanentemente aterrorizado  para  poder  manter  o  poder.  Para  o  secretário  florentino,  “quem  se  tornar príncipe pelos favores do povo deve mantê-lo amigo” e, de outro lado, “quem se tornar príncipe com os favores dos grandes e contra o povo deve, antes de tudo, tentar conquistá-lo,  o  que  é  fácil,  se  o  proteger”  (Ibidem,  p.61).  Em  suma,  para  ele,  “a  um  príncipe  é necessária a amizade do povo, do contrário, não terá salvação na adversidade” (Ibidem, p.62).

No  capítulo  XX,  tratando  sobre  as  fortalezas  como  instrumentos  de  proteção, Maquiavel  destacará  que  “a  melhor  fortaleza  que  existe  é  não  ser  odiado  pelo  povo. Porque, mesmo que tenhas fortalezas, se o povo sentir ódio por ti, elas não te salvarão”, dado  que  “nunca  faltarão  estrangeiros  para  ajudar  o  povo  rebelado”  (Ibidem,  p.128). Argumento  que  vale  também  na  defesa  do  príncipe  contra  as  conspirações,  pois  elas necessitam do apoio popular para progredirem: “um dos remédios mais poderosos que um príncipe pode ter contra uma conspiração é não ser odiado por todos”, pois “quem conspira acredita que, com a morte do príncipe, irá satisfazer o povo”, e sem apoio do povo o conspirador sabe que não conseguirá realizar seu objetivo político (Ibidem, p.110). E ainda: “um príncipe que possua uma cidade forte e não seja odiado não pode ser atacado e, se o fosse, quem o atacasse partiria envergonhado” (Ibidem, p.66).

Para Maquiavel, o príncipe sábio, cauto, firme compreende que a manutenção do poder necessita da “benivolenzia populare” (1988, p.95), do apoio do povo, ou “consenso popular” (1996, p.111), segundo a tradução de Maria Cumo. Tal príncipe, em suma, “deve estimar os nobres, mas não fazer-se odiar pelo povo” (Ibidem, p.113).

Maquiavel se dissocia assim do provérbio de seu tempo segundo o qual “quem se apoia no povo, apoia-se na lama”, pois, a seu aviso, isso vale para o “cidadão privado que pretenda ser libertado pelo povo” (Ibidem, p.62). “Mas quando quem se apoia no povo”, pondera Maquiavel, “é um príncipe que sabe comandar, que tem bom coração, que não se assusta na adversidade, que sabe administrar a sua cidade e com o seu ânimo e as suas leis exorta o povo, nunca será enganado por ele e terá feito boas fundações” (Ibidem, p.62).  Em  tal  ponderação,  percebe-se  explicitamente  o  que    se  encontra  de  forma implícita em outras passagens de O Príncipe: segundo Maquiavel, para a manutenção do poder,  o  príncipe  ideal,  que  é  sábio,  cauto,  prudente,  firme  necessita  de  um  conjunto complexo, interligado de virtudes políticas tais como saber comandar, ter bom coração, não se assustar na adversidade, saber administrar sua cidade com ânimo e na legalidade. Constatações maquiavelianas. Diferentes das  interpretações  maquiavélicas que ainda persistem no senso comum.


2.2.O príncipe, o povo e os custos políticos da manutenção do poder

É justamente a construção da “benivolenzia populare” (1988, p.95, 96) um dos critérios fundamentais que orientam o príncipe sábio, prudente e firme de Maquiavel nos seus cálculos dos custos previstos e imprevistos das tomadas de decisão políticas pela manutenção inteligente da unidade política. A partir de tal critério, Maquiavel constatará que  o  príncipe  que  gasta  demais  transformará  o  contentamento  popular  imediato  em descontentamento desestabilizador, uma vez que provavelmente terá de adotar políticas de  contenção  de  despesas  para  compensar  sua  liberalidade  econômica  antecedente, transformando o humor favorável em desfavorável (Capítulo XVI, 1996, p.95-98). Por isso, Maquiavel considerará politicamente virtuoso o príncipe parcimonioso, avaliando a parcimônia  como  instrumento  mais  adequado  que  a  liberalidade  na  relação  política exitosa entre “benivolenzia populare” e estabilidade do poder.

Segundo Maquiavel, há uma relação de recíproca dependência, necessidade, entre príncipe  e  povo.  Para  ele,  “um  príncipe  sábio  deve  pensar  no  modo  em  que  os  seus cidadãos,  sempre  e  em  qualquer  tempo,  precisem  do  Estado  e  dele.  Assim,  ser-lhe-ão sempre  fieis”  (1996,  p.63).  A  relação  entre  príncipe  e  povo,  segundo  o  pensador florentino, não é uma relação de amor romântico, mas uma relação de compartilhamento de interesses materiais interdependentes, uma relação de recíproca sobrevivência. Nessa relação  fática  funda-se  a  conexão  delicada,  complexa  entre  manutenção  do  poder (estabilidade política), proteção recíproca e consenso ou “benivolenzia populare”.

Dessa forma, diferente do príncipe que vive voltado para “os prazeres da vida” (Ibidem,  p.87),  “ocioso”  (Ibidem,  p.90),  “efeminado  e  pusilânime”  (Ibidem,  p.92), Maquiavel destaca que o príncipe virtuoso é exitoso porque asceta: conquista as virtudes políticas  necessárias  para  a  manutenção  inteligente  do  poder,  liderando  suas  forças militares (Capítulo XIV), exercitando-se na ciência e arte da conquista e manutenção da estabilidade política, por meio das virtudes políticas, com o aproveitamento das ocasiões (fortuna). Em tempos de paz, tal príncipe asceta se prepara para as prováveis adversidades “com  ações  e  com  a  mente”  (Ibidem,  p.88),  “de  modo  que  a  sorte,  quando  mudar, encontre-o pronto para resistir” (Ibidem, p.90). Para Maquiavel, “quanto ao exercício da mente, o príncipe deve ler livros de história, refletir sobre os atos dos grandes homens. Ver como foram conduzidas as guerras, examinar os motivos de suas vitórias e derrotas para destas fugir e imitar as primeiras” (Ibidem, p.89). O estudo, portanto, não para a ilustração aristocrática, mas como exercício vital de virtude política para a manutenção inteligente do poder.


2.3.O ser humano nas relações de poder segundo Maquiavel

No  perfil  ideal  do  príncipe  construído  por  Maquiavel,  calculista  na  busca  da manutenção do poder, está contida sua compreensão moral sobre a natureza humana, para ele ambígua, mutável, variável. Dessa forma, emerge que o realismo de Maquiavel possui duas notas típicas: é realismo metodológico (ele busca de modo indutivo a verdade efetiva da coisa) e realismo político-antropológico: sustenta que o ser humano (súditos e nobres) é de humor variável conforme a realização ou não de seus interesses materiais, revelando o que é ou representando o que não é.

Maquiavel, ao afirmar que o príncipe desenvolve suas atividades de poder “entre tantos que não são bons” (1996, p.91), caracteriza o lugar político do príncipe como lugar ameaçado pelas possibilidades constantes de traição, mentira, falsidade, não-fidelidade entre súditos e nobres aliados. Por isso, para o secretário florentino, o príncipe inteligente é prudente, identifica e interpreta o humor real dos seus interlocutores, tomando decisões fundadas nessa interpretação. Em situações de humor desfavorável, “para um príncipe é necessário, querendo se manter, aprender a poder ser não bom e usar ou não usar isso, conforme  precisar”  (Ibidem,  p.91-92).  O  príncipe  sábio,  portanto,  não  é  ingênuo,  é prudente,  ou  melhor,  na  inteligência  indutivo-analítica  do  príncipe  está  contida  a prudência política, com seus cálculos de probabilidade, com sua capacidade de prever o péssimo que mesmo sendo indesejado é provável.

Ser “não bom” não significa ser mal, como infelizmente encontramos em algumas traduções equivocadas de O Príncipe em língua portuguesa. No texto original, lemos:  “Onde  è  necessario  a  uno  principe, volendosi mantenere, imparare a potere essere non buono, et usarlo e non usare secondo la necessita” (1988, p.83). Assim, Maquiavel não recomenda que o príncipe seja mau, mas  firme,  resoluto,  não-ingênuo,  prudente,  não-bom. Para se defender de cidadãos particulares, poderia e deveria usar as medidas previstas nas leis contra conspirações, o que na época significava inclusive aplicar a pena de morte. Mas a relação com o povo (súditos) é mais complexa. Se Maquiavel recomendasse ao príncipe de agir com maldade contra o povo, como método de manutenção do poder, ele estaria negando a lógica geral de seu livro: “a um príncipe é necessária a amizade do povo, do contrário, não terá salvação na adversidade” (1996, p.62); “a melhor fortaleza que existe é não ser odiado pelo povo” (Ibidem, p.128).

Em tal quadro hermenêutico compreende-se a pergunta do Capítulo XVII: deve um príncipe ser amado ou temido? O que significa ser temido? Seria o mesmo que ser odiado?  E  por  quem  ser  temido,  por  cidadãos  privados,  nobres,  ou  pela  maioria  dos súditos?  Maquiavel  inicia  o  capítulo  XVII  sustentando  justamente  que  “todo  príncipe deve  desejar  ser  considerado  clemente  e  não  cruel”,  usando,  porém,  a  clemência  com prudência, pois a “piedade excessiva” pode permitir “desordens” (Ibidem, p.99). Sobre o príncipe prudente, destaca “que a excessiva confiança não o torne incauto e a excessiva desconfiança não o torne intolerável” (Ibidem, p.100).

A resposta de Maquiavel é que é melhor ser amado e temido, mas destaca  que  “é  muito  mais  seguro  ser  temido  do  que  amado,  no  caso  de  ser  preciso renunciar a um dos dois” (Ibidem, p.100). O significado de ser temido, porém, não é o mesmo de ser odiado. De fato, para ele, “o príncipe deve se fazer temer de um modo que, se não conquista o amor, evita o ódio. É possível ser, ao mesmo tempo, temido, mas não odiado” (Ibidem, p.101)[2]. Dessa forma, ser temido pode ser interpretado como agir com a firmeza necessária para ser respeitado, sem ultrapassar o limite da crueldade, que atrairia o ódio, rejeitado por Maquiavel na lógica das virtudes políticas do príncipe ideal. Mas por  qual  motivo  o  secretário  florentino  sustenta  a  necessidade  de  firmeza  resoluta,  de respeito  coercitivo?  A  motivação  de  Maquiavel  é  sempre  a  busca  da  manutenção inteligente  do  poder,   evitando  as  desordens  derivadas  da   ingenuidade, um dos ingredientes  negativos  (politicamente  não-virtuoso)  do  príncipe  hesitante,  pusilânime, que não aprendeu a identificar   o   humor   político real dos seus interlocutores, eventualmente camuflado em uma representação apenas aparentemente  favorável ao príncipe. E a explicação dessa representação política  (falsificação),  encontra-se na interpretação moral de Maquiavel sobre a ambiguidade da natureza humana:

Geralmente,  pode-se  dizer  que  os  homens  são  ingratos,  volúveis, mentirosos, traiçoeiros, covardes, ávidos por dinheiro. Se lhes fazes o bem, todos estão contigo. Oferecem-te o sangue, as coisas, a vida, os filhos, como disse antes, quando a  necessidade está longe de ti. Mas quando a necessidade chega perto, eles se rebelam. E o príncipe que havia se baseado completamente nas palavras deles, se não tiver outras defesas, arruína-se (1996, p.100-101).

A aliança política de um príncipe com o povo, portanto, é necessária, mas não pode  ser  incauta.  Para  a  sustentação  da  unidade  política  do  principado, em caso de adversidade política, o ser temido é ingrediente necessário, obrigatório, mas no sentido de não ser odiado, pois o ódio, diferente do temor, segundo a hermenêutica política de Maquiavel, acelera a ruína política em vez de superá-la: o príncipe sábio e prudente “deve somente cuidar para fugir do ódio” (Ibidem, p.103)[3].

Segundo  Maquiavel,  portanto,  os  seres  humanos  são  moralmente  ambíguos, podendo agir com bondade ou com maldade. Ao afirmar que “os homens esquecem mais rápido a morte do pai do que a perda do patrimônio” (1996, p.101), ele recomenda que não se toque em seus bens, pois isso provoca ódio, ou seja, mais uma justificativa para o emprego da inteligência política fundada na prudência, que, em algumas  situações, “consiste em saber reconhecer as qualidades dos inconvenientes e ver o menos prejudicial como sendo bom” (Ibidem, p.133)[4].

A palavra “prudência” é frequente em O Príncipe, e Maquiavel usa também o termo “prudentíssimos” (1996,  p.137) ao destacar a necessidade de os príncipes defenderem-se dos “aduladores, dos quais as cortes estão repletas”, e que ele classifica como sendo uma “peste” (Ibidem, p.137). Porém, há também o perigo oposto, que é o de permitir que todos digam a verdade ao príncipe, pois “quando todos podem te dizer a verdade, falta-te a reverência” (Ibidem,  p.137). Entre a adulação e a disseminação de conselheiros sinceros, segundo Maquiavel

um príncipe prudente deve escolher  uma  terceira  solução,  elegendo homens sábios para o seu governo. Só a eles deve permitir que digam a verdade e só a respeito do que lhes perguntar e nada mais. Mas deve lhes perguntar sobre tudo, ouvir a opinião deles para depois deliberar sozinho, como achar certo (Ibidem, p.137).

A sabedoria do príncipe, porém, segundo Maquiavel, não está nos conselhos que ouve. “Um príncipe que não seja sábio nunca ouvirá conselhos uníssonos, nem saberá sintetizá-los”, continua o pensador florentino, que conclui tal observação destacando que “os bons conselhos, de onde quer que provenham, nascem da prudência do príncipe e não a prudência do príncipe dos bons conselhos” (Ibidem, p.139).


Considerações conclusivas

A maior virtude cognitiva de um príncipe, portanto, é sua inteligência indutivo-hermenêutica,  associada  à prática da prudência e “firmeza de ânimo” (Ibidem,  p.113).

Na concretização de tal firmeza resoluta pela manutenção inteligente e prudente do  poder,  Maquiavel  sugere  que  o  príncipe  sábio  e  prudente  governe  unindo  em  si  a sutileza  da  raposa,  que  descobre  as  armadilhas  camufladas,  e  a  força  firme  do  leão, sabendo quando usar uma ou outra dessas duas modalidades diferentes e complementares de força política.

O  príncipe  virtuoso,  portanto,  não  é  o  príncipe  odiado,  não  é  o  que  busca  a manutenção do poder a qualquer custo. O príncipe virtuoso não é “odioso e desprezível”, e  ele  “torna-se  desprezível  quando  é  considerado  volúvel,  superficial,  efeminado, pusilânime, indeciso” (Ibidem, p.109). Maquiavel constatou, em síntese, que “o ódio e o desprezo foram a razão da ruína” de muitos príncipes (Ibidem, p.121). Assim, nem odioso nem  desprezível,  mas  sábio,  prudente,  resoluto  para  “conquistar  e  manter  o  Estado” (Ibidem, p.108); mantê-lo “bem ordenado” (Ibidem, p112) e “seguro” (Ibidem, p.127).

Em suma, manutenção inteligente do poder, ancorada em cálculos permanentes de previsibilidade dos custos políticos das tomadas de decisão sob a ótica da realização da “benivolenzia populare” (1988, p.95, 96) em função da estabilidade do principado.

Bibliografia
CROCE, Benedetto. Etica e politica. Bari: Laterza, 1931.
D’ADDIO, Mario. Storie delle dottrine politiche. Gênova: ECIG, 1995.
MACHIAVELLI, Niccolò. Il Principe. La Spezia: Fratelli Melita Editori, 1988.
MAQUIAVEL. Nicolau. O Príncipe. Tradução de Maria Lucia Cumo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
MARQUES, Luiz. Maquiavel e sua época. In: Revista história viva: Maquiavel – o gênio de Florença. São Paulo: Duetto, n. 15, 2006.
PIZZORNI, Reginaldo. Storia delle dottrine politiche. Roma: 1989.
VILLARI, Pasquale. Lo spirito dei tempi. In: Niccolò Machiavelli – Opere. Milão: Gherardo Casini Editore, 1989, p.17-25.



[1] “donde la loro patria ne fu nobilitata e diventò felicissima” (1988, p.47).
[2] “Debbe non di manco el principe farsi temere in modo, che, se non acquista lo amore, che fugga l’odio; perché può molto bene stare insieme esser temuto e non odiato” (1988, p.89).
[3] “Debbe solamente ingegnarsi di fuggire lo odio” (1988, p.90).
[4] “La prudenzia consiste in sapere conoscere le qualità delli inconvenienti, e pigliare el men tristo per buono” (Ibidem, p.111).